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segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Entrevista com Lutero

Cristãos autênticos são os que trazem a vida e o nome de Cristo para dentro de sua vida.

O que Lutero teria a dizer para os dias de hoje? E se ele tivesse liderado o movimento de Reforma há poucos meses e fosse possível entrevistá-lo? Dois professores da Escola Superior de Teologia em São Leopoldo (RS) foram desafiados a imaginar uma entrevista onde Lutero pudesse responder a questões que dizem respeito ao cotidiano brasileiro.

 

Apesar de sua agenda apertada, o Dr. M. Lutero se dispôs a nos conceder uma rápida entrevista. Reconhecido internacionalmente como teólogo, pregador e reformador, ele fez questão de frisar duas coisas antes de começar a responder a nossas perguntas.

Primeiro, disse que continua inconformado com o fato de igrejas e pessoas se autodenominarem “luteranas”. Ele esbravejou: “Peço omitir meu nome e não se chamar de luterano, mas cristão. Que é Lutero? A doutrina não é minha. Tampouco fui crucificado em favor de alguém. Que pretensão seria essa de um miserável e fedorento saco de vermes como eu, se quisesse que os filhos de Cristo fossem chamados por seu desastrado nome? Vamos extirpar as siglas partidárias e nos chamar de cristãos, de quem temos a doutrina”.

A segunda observação foi para não valorizarmos em demasia suas palavras, já que não há receitas prontas para os nossos problemas: “Queria que todos os meus livros fossem sepultados e esquecidos para sempre, para dar lugar a outros melhores”. Lutero entende que viveu na sua época e para a sua época. Para ele, nós deveríamos olhar com atenção para o nosso tempo, que é totalmente diferente do tempo em que ele vive, encontrando por nós próprios a melhor forma de pregar e viver a palavra de Deus. E arrematou: “Aproveitem a palavra de Deus e sua graça enquanto estão aí, pois elas são como chuva de verão, que não retorna ao lugar por onde passou”.

 

Dr. Lutero, o que foi a Reforma?

Lutero – Para mim, a Reforma tem a ver principalmente com as palavras “justiça de Deus”. Eu tratei de estudá-las com afinco na Carta aos Romanos. Odiava essa expressão, porque todos os professores tinham me ensinado que esta era a justiça com a qual Deus é justo e castiga os pecadores e injustos. A esse Deus, justo e que pune, eu não amava. Ao contrário, eu odiava. Mesmo quando era monge e vivia de modo exemplar, continuava me sentindo pecador. Era torturado por minha consciência.

O que Romanos tem a ver com essa história?

Lutero – Pois é, sempre de novo eu acabava batendo naquela passagem do capítulo 1: “A justiça de Deus é nele revelada, como está escrito: o justo vive por fé”. Não entendia a relação entre as palavras. Que será que Paulo queria dizer? Sem descobrir, eu ficava confuso e furioso. Aí Deus teve pena de mim. Finalmente, entendi que a justiça ali expressa é aquela justiça que vivemos pela dádiva de Deus, a fé. A justiça de Deus é revelada através do evangelho, é a justiça que Deus faz, cria em nós pela fé. Exatamente como está escrito: “O justo vive por fé”.

Quais foram as conse­qüências disso para o sr.?

Lutero – Sabe, foi como se eu tivesse renascido. Foi como passar pelas portas do paraíso. A Escritura, lida nessa perspectiva, ficou totalmente diferente. A frase “justiça de Deus”, antes odiada, passou a ser para mim a mais amada de todas. Quanto ao resto, bem, vocês conhecem a história: indulgências, briga com Roma e com o imperador, introdução da Reforma em comunidades e escolas, tradução da Bíblia, liturgia e hinos, catecismo… Todo o resto foi decorrência dessa descoberta e do compromisso posto por Deus para quem a vivenciou.

Percebe-se o quanto o estudo da Escritura ajudou você. O que o sr. sugere para quem lê a Bíblia?

Lutero – Fundamental é procurar as partes que apresentam Cristo e ensinam tudo o que é necessário e bom saber sobre ele. O evangelho e a primeira carta de João, as cartas de Paulo - em especial Romanos, Gálatas e Efésios - e a primeira carta de Pedro são o cerne e a medula entre todos os livros. Cada pessoa cristã deveria lê-los por primeiro e com maior freqüência. Ali achará enfatizado de forma magistral como a fé em Cristo supera pecado, morte e inferno e dá vida, justiça e salvação. Ali achará o evangelho propriamente dito.

Até agora o sr. falou quase que exclusivamente sobre aquilo que Deus faz. E nós, Dr. Lutero? Especialmente nós, pessoas cristãs, que fazemos nós?

Lutero – Pessoas cristãs autênticas são as que trazem a vida e o nome de Cristo para dentro de sua vida. A pessoa cristã não vive em si mesma, mas em Cristo e em seu próximo, ou então não é vida cristã. Vive em Cristo pela fé, no próximo, pelo amor. Pela fé a pessoa cristã é levada para o alto, acima de si mesma, para Deus. Por outro lado, pelo amor desce abaixo de si, até o próximo, assim mesmo permanecendo sempre em Deus e seu amor. Uma pessoa cristã é senhora absoluta sobre tudo e a ninguém está sujeita. Ao mesmo tempo, no entanto, serve a tudo e a todos, estando sujeita a todos.

O sr. tem insistido na doutrina da salvação por graça e fé. Tem afirmado que não há nada que possamos fazer para merecer a salvação. Na sua opinião, os cristãos têm também alguma responsabilidade social?

Lutero – Cristo nos ensina para quem devemos fazer obras, mostrando-nos quais são boas obras. Todas as outras obras, com exceção da fé, devemos fazê-las para o próximo. Pois Deus não exige de nós que lhe façamos uma obra, a não ser unicamente a fé, através de Cristo. Com a fé ele tem o suficiente. Com ela o honramos como aquele que é benévolo, misericordioso, sábio, bom, verdadeiro, etc. Depois disso, cuide apenas para proceder com o próximo como Cristo procedeu com você, e deixe todas as suas obras com toda a sua vida visar ao seu próximo. O seu próximo é aquele que necessita de você em assuntos de corpo e de alma.

No Brasil, vivemos um tempo de muita discussão política. É legítimo que os cristãos assumam cargos e participem ativamente da política?

Lutero – Devemos saber que, desde o início do mundo, um governante sábio é ave rara, e mais raro ainda, um governante honesto. Mas a política é um campo de serviço à coletividade e nenhum cristão deve assumir cargo político para defender interesses pessoais. Em favor de outros, porém, pode e deve assumir para impedir a maldade e proteger a honestidade.

Por que o sr. tem  insistido tanto na necessidade de criar e manter escolas?

Lutero – Na verdade, é pecado e vergonha o fato de termos chegado ao ponto de haver necessidade de estimular e de sermos estimulados a educar nossos filhos e a juventude e de buscar o melhor para eles. Aliás, na minha opinião, nenhum pecado exterior pesa tanto sobre o mundo perante Deus e nenhum merece maior castigo do que justamente o pecado que cometemos contra as crianças, quando não as educamos.

O sr. acredita que a sociedade terá algum proveito se investir em educação?

Lutero – Eu penso que o progresso de uma cidade não depende apenas do acúmulo de grandes tesouros, da construção de muros de fortificação, de casas bonitas, de muitos canhões e da fabricação de muitas armaduras. Inclusive, onde existem muitas coisas dessa espécie e aparecem alguns tolos enlouquecidos, o prejuízo é tanto pior e maior para a referida cidade. Muito antes, o melhor e mais rico progresso para uma cidade é quando possui muitos homens e mulheres bem instruídos, muitos cidadãos e cidadãs ajuizados, honestos e bem-educados. Estes, então, também podem acumular, preservar e usar corretamente riquezas e todo tipo de bens.

O que o sr. pensa sobre  justiça e injustiça nas relações econômicas existentes na sociedade?

Lutero – A maior desgraça é, com certeza, o empréstimo a juros. Neste ponto, também se deveriam realmente pôr rédeas aos grandes banqueiros. Como é possível que durante a vida de uma única pessoa se juntem fortunas tão imensas de modo lícito? Eu não conheço a conta. Mas não compreendo como se pode, com 100 reais, ganhar 20 por ano, sim, com um real, ganhar mais outro, e tudo isso proveniente não do trabalho!

O sr. é lembrado como alguém que valoriza o trabalho como uma verdadeira vocação. Poderia explicar isso um pouco melhor?

Lutero – Veja bem, um sapateiro, um metalúrgico, um agricultor, cada um tem o ofício e a ocupação próprios de seu trabalho. Mesmo assim, todos são sacerdotes e bispos ordenados de igual modo, e cada um deve ser útil e prestativo aos outros com seu ofício ou ocupação, de modo que múltiplas ocupações estão voltadas para uma comunidade, para promover corpo e alma, da mesma forma como todos os membros do corpo servem uns aos outros.

 

Por pastor da IECLB Osmar L. Witt e pastor da IELB Ricardo W. Rieth.

 

(Fontes: Obras Sele­cionadas (OSel) 1, 256, OSel 2, 284; 337s.; 456, OSel 5, 305s. e 309, OSel 6, 95; 103; 481, 7-14, Pelo evangelho de Cristo, p. 22. 31. 177s., WA 10 I 2, 168, 17- 169,10;
Mensageiro Luterano, Outubro de 2000.)

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