Espiritismo kardecista
Na história ocidental, o século XIX apresenta-se como o momento em que se acentuam várias das tendências culturais dos tempos modernos, já iniciadas nos séculos XV e XVI. Por mais de um milênio, a religião cristã se mantivera como visão dominante do mundo, a separar, segundo critérios tidos como revelação de Deus, o verdadeiro do falso, o certo do errado. Ao findar a Idade Média, essa visão sacral foi pouco a pouco cedendo lugar a métodos mais secularizados de conceber a vida humana. Valores, normas e instituições passaram a ser vistos como produtos da atividade dos homens, suscetíveis de transformação e progresso.
O repúdio cada vez mais nítido das concepções providencialistas medievais vem aguçar o velho conflito entre razão e fé. Necessidades de controlar a natureza, para fins práticos, tornam ampla e vital a evolução das ciências, que acabam por penetrar todas as esferas da existência humana à medida que se desenvolve a civilização industrial e urbana. A ciência assume definitivamente as funções culturais de sistema dominante de concepção do mundo.
Nesta atmosfera de secularização, a história de cada ser humano aparece não mais como a realização do eterno desígnio da Providência de que falam os Evangelhos, nem como um mistério de Destino a que se referiam os filósofos da Antiguidade. Ao contrário, reduz-se à mera sucessão de causas e efeitos empíricos, passiveis de compreensão e controle científicos. A vida humana perde considerável parte do seu mistério. Acontecimento do ciclo vital – concepção, nascimento, doença, amor e morte – são agora interpretados como processos biológicos, psíquicos e sociais, dependentes de fatores exclusivamente materiais que podem ser controlados por técnicas e métodos cada vez mais seguros de sua eficiência.
Em meio a esta relativização de valores, aparece um movimento que se define ao mesmo tempo como ciência, filosofia e religião. Numa contestação do clima cultural dominante, proclama que não existe um mundo apenas material, mas que a vida humana se relaciona também a algo que está acima dela mesma: o mundo dos espíritos, tão real e passível de experimentação quanto o mundo material. Nessa perspectiva, cada existência individual adquire sentido por ser mais do que ela própria; cada acontecimento significa mais do que seu mero acontecer material; cada ato humano se insere num contexto ao mesmo tempo racional e místico, cientifico e religioso, natural e sobrenatural. Essa coexistência aparentemente impossível de razão e fé, rigor cientifico, consolação religiosa e imperativos morais, constitui a característica básica do Espiritismo.
Quando, em 1847, os insólitos e curiosos episódios ocorridos em sua granja em Hydesville (Nova York) – batidas na parede e objetos que se moviam inexplicavelmente – chamaram a atenção da família Fox, longe se estava de supor que eles contivessem o embrião de um movimento e de uma doutrina simultaneamente científica e religiosa de explicação do mundo.
A comunicação com os mortos – necromancia – constitui prática muito antiga na história das civilizações. Egípcios, caldeus, persas, chineses e gregos, bem como povos americanos e africanos de cultura tribal, costumavam praticá-la sob formas mágicas e religiosas. Varias passagens do Antigo Testamento atestam a freqüência de tal prática entre os povos vizinhos dos hebreus.
O século XIX, apesar do materialismo que o caracteriza, ressuscitou a antiga prática, elaborado, a partir de experimentações consideradas cientificas, métodos capazes de facilitar a comunicação racional com o mundo dos espíritos desencarnados. Das leves pancadas e ruídos produzidos em sua casa, as filhas do casal Fox – Margaret e Katie – criaram um código de sinais para poderem dialogar com aquilo que acreditaram ser um fantasma ou espírito. Para se receber a mensagem, eram necessárias disposições especiais, isto é, mediúnicas, como as que possuíam as adolescentes Fox. Entretanto, o código era muito rudimentar e incomodo: as mesas respondiam sim ou não às perguntas por meio de movimentos e ruídos.
Conta um escritor espírita que, já em fins de 1850, os próprios espíritos indicaram nova maneira de comunicação: as pessoas sentavam-se ao redor de uma mesa, colocavam as mãos sobre ela e recitavam o alfabeto. Cada vez que fosse proferida a letra que servisse ao espírito para formar as palavras, a mesa dava uma batida com uma das pernas. E assim, sempre "por iniciativa ou sugestão dos espíritos", foram se aperfeiçoando os métodos de comunicação mediúnica. Afirma Allan Kardec que um espírito aconselhou a adaptar-se um lápis a uma cesta que, posta sobre uma fola de papel, escrevia automaticamente, transmitindo até mensagens de muitas paginas.
O fenômeno multiplicou-se e teve difusão rápida. As mesas dançavam, as cestas escreviam e os espíritos se manifestavam por toda parte, despertando curiosidade e entusiasmo entre pessoas das mais diversas posições sociais. Dos Estados Unidos a onda passou para o Canadá e México e, nos anos seguintes, conquistava a Inglaterra, a Alemanha e a Franca. Ampliando os tipos de manifestação, não apenas mesas, mas também chapéus, bacias, pratos, livros, tudo se movia.
Além das mesas dançantes e objetos escreventes, começaram a se verificar outros fenômenos nas sessões: ruídos de artilharia, de tambor, de marteladas, fosforescências e agitações, mãos sem braços a golpear os assistentes.
Entre os entusiastas dos novos experimentos não se encontravam apenas pessoas curiosas ou desejosas de um passatempo excitante; muitos outros, inconformados com a perda de entes queridos, procuravam consolo na possibilidade de se comunicarem com eles. Havia também homens de ciência.
Da curiosidade à codificação
Ao se difundirem as praticas espíritas e se multiplicarem os casos de mediunidade, a curiosidade foi cedendo lugar a tentativas de investigação por parte de pessoas instruídas, sobretudo clérigos, médicos, professores de química e física, que consideravam os fenômenos dignos de observação sistemática e explicação cientifica.
Cinco anos após os acontecimentos de Hydesville (1852), realizava-se o primeiro Congresso Espírita em Cleveland. Enquanto isso, a rotação das mesas, defendida ou atacada por grande número de livros e periódicos, recebia as mais diversas explicações: eletricidade, magnetismo, ação muscular, fraude, intervenção direta das almas dos mortos, coisas do demônio, alucinação.
Pouco a pouco foram se fundando sociedades "para pesquisa psíquica", com a finalidade de estudar os vários casos e verificar o que de verdade ou de fraude havia naqueles experimentos. Em 1871, um comitê de 33 membros da LOndon Dialectical Society, depois de cuidadosa investigação, concluía que tais "movimentos dos corpos sólidos sem contato material eram possíveis graças a certas forças até então desconhecidas, forças essas freqüentemente dirigidas pela inteligência". Noutras palavras, havia no movimento das mesas a intervenção de uma causa inteligente.
De modo geral, todas essas sociedades avaliavam os novos experimentos a partir da afirmação de que o conhecimento até então realizado sobre a natureza e suas leis era ainda insuficiente; não era de estranhar que alguns fenômenos não pudessem ser explicados pelas teorias da época. Não confirmada em muitos casos a hipótese de fraude e impostura, os espíritas, isto é. Aqueles que explicavam os fenômenos pela ação dos espíritos desencarnados, tinham a seu favor a evidencia dos fatos, a fragilidade das explicações alternativas, que relutavam em aceitar a intervenção direta dos espíritos dos mortos, e a imaginação popular, que via naqueles fenômenos fatos sobrenaturais. Ao Espiritismo faltava apenas uma sistematização teórica que seria feita por Léon Hippolyte Denizard Rivail, conhecido como Allan Kardec.
Entre o ceticismo de uns, a desaprovação de outros e a adesão de um numero cada vez maior, a crença na comunicação com os espíritos se expandia sem base teórica. Em 1854, porém, um homem de 50 anos, já há algum tempo dedicado ao estudo do magnetismo animal, do hipnotismo e do sonambulismo, veio a tomar conhecimento das mesas falantes e dos fenômenos mediúnicos. De formação positivista, passou a freqüentar as sessões espíritas com o intuito de apurar a legitimidade das aparições com todo o rigor e a objetividade dos métodos cientifico-positivos. Impressionado sobretudo com os casos de escrita mediúnica, reuniu e examinou grande numero de mensagens psicografadas, isto é, tidas como escritas pelos próprios espíritos através dos médiuns. Verificou a concordância de inúmeras mensagens por meio de rigorosa analise comparativa e concluiu pala verdade da explicação espírita. Após convencer-se da inexistência de fraude, dedicou-se ao estudo e à codificação das mensagens do além, que continham as bases filosóficas, cientificas e religiosas da nova doutrina que ele batizara definitivamente com o nome de Espiritismo, para distingui-la do espiritualismo. Como primeiro resultado de seus estudos, publicou, em 1857, O Livro dos Espíritos, onde o Espiritismo é definido como a doutrina que tem por princípio a possibilidade e conveniência de comunicações entre o mundo material e o mundo das entidades espirituais desencarnadas.
Léon Hippolyte Denizard Rivail passou a se chamar então Allan Kardec, nome provindo de sua encarnação anterior, quando teria sido um druida. Declarando-se apenas o sistematizador e não o inventor do Espiritismo ("vi, observei, coordenei e procuro fazer compreensível aos outros o que eu mesmo entendi"), Allan Kardec desenvolveu intensa atividade apostólica. Em 1858, fundou a Revue Spirite para divulgação dos fatos e da doutrina espírita. Conforme o programa traçado por ele, a revista publicaria "manifestações materiais ou intelectuais obtidas em sessões a que os colaboradores tiveram ocasião de assistir pessoalmente; ocorrências de lucidez sonambúlica e de êxtase, bem como de previsões e pressentimentos; fatos relativos a poderes ocultos atribuídos cera ou erradamente a determinados indivíduos; lendas e crendices populares; ocorrências de visões e aparições; fenômenos psicológicos especiais que acontecem no momento da morte; problemas morais e psicológicos que pedem solução; fatos morais, atos notáveis de devotamento e de abnegação , cuja divulgação possa ser útil como exemplo".
No mesmo ano, fundou-se a Societé Parisienne dês Ètudes Spirites para reunião e formação dos adeptos, experimentação e estudo das mensagens do além, pesquisa bibliográfica e histórica dos fatos espíritas. Por volta de 1864 floresciam sociedades espíritas em toda a Franca, na Itália, na Bélgica.
Além de inúmeras viagens de propaganda da nova doutrina, Allan Kardec escreveu ainda O livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênesis, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Morreu em 1869, deixando um Testamento filosófico, onde se encontram normas pormenorizadas para a organização das sociedades espíritas.
O movimento espírita continuou a expandir-se, atingindo o ápice no final do século XIX e primeiros anos do século XX. Entretanto, começou a perder terreno na Europa e nos Estados unidos após a Primeira Guerra Mundial, sendo hoje, entretanto, bastante reduzido e disperso o numero de adeptos nessas regiões.
A doutrina Kardecista
O principio básico da doutrina filosófica e religiosa do Espiritismo encontra-se na afirmação da existência de um mundo transcendental, próprio das entidades espirituais desencarnadas, ou seja, das almas depois da morte. Do ponto de vista espírita, portanto, o mundo é uma unidade com duas faces: uma visível ou encarnada e a outra invisível ou desencarnada. Os experimentos mediúnicos teriam confirmado que a passagem de uma face à outra se produz sem dificuldade, donde se conclui que os espíritos estejam em constante comunicação com o mundo material, assegurando a unidade fundamental do universo criado por Deus.
O mundo visível constitui apenas sua face encarnada. Poderia deixar de existir ou nunca ter existido sem alterar a essência do mundo espírita, que, segundo o Kardecismo, "é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a tudo". Portanto, entre os encarnados e os desencarnados, com exceção da vestimenta exterior e efêmera do corpo, há verdadeira identidade. Trata-se de espíritos sob dois aspectos diferentes, pertencentes ora ao mundo visível ora ao invisível, concorrendo num e noutro para o mesmo fim: o progresso indefinido rumo à perfeição.
O Kardecismo rejeita simultaneamente a concepção materialista da alma como simples principio da vida orgânica material, sem existência própria, e a concepção panteísta de uma alma universal. Ele reserva para a alma "a sua significação mais vulgar", entendendo-a como "um ser imaterial e individual que existe em nós e que sobrevive ao corpo". Alma é um espírito encarnado.
O homem é composto de corpo e alma, sendo aquele apenas o invólucro temporário desta última , que se desliga do corpo na hora da morte e volta ao mundo dos espíritos, de onde havia saído, para então reiniciar uma nova existência material. "Que vem a ser o homem, senão um espírito enclausurado num corpo?" escreve kardec em O Livro dos Médiuns. Entretanto, para evitar a dicotomia corpo-alma, apela para a existência no homem de um terceiro elemento de natureza semimaterial, o perispírito. Laço que une o espírito à sua vestimenta corporal, o perispírito não passa de um corpo etério, "cuja substancia é recolhida no fluido universal ou cósmico que o forma e o alimenta". Inseparável do espírito, não apenas possibilita a união da alma ao corpo como permite que o espírito desencarnado se manifeste por efeitos sensíveis: ruídos, aparições, deslocamentos de objetos. O espírito tem necessidade da matéria para agir sobre a matéria; por isso, mesmo destruído pela morte o envoltório corporal, conserva seu perispírito, através do qual poderá atuar sobre o mundo material e dar-se a conhece aos encarnados. Fácil deduzir daí a importância desse terceiro elemento para a explicação de qualquer fenômeno mediúnico.
O Kadecismo, portanto, entende o espírito desencarnado como algo tão concreto e definido que pode até ser percebido pelos sentidos. A prova disso são as constantes relações dos espíritos com os homens, relações que Allan Kardec classifica como ocultas – compreendendo a "influencia boa ou má que eles exercem sobre nós sem o sabermos"; e ostensivas – as diversas espécies de comunicações escritas, faladas ou materiais, quase sempre através de um médium.
Se as influencias exercidas pelos espíritos podem ser boas ou más, quer dizer que eles não são iguais. Allan Kardec descreve o mundo dos espíritos como sendo uma hierarquia, que se estabelece conforme o grau de pureza e imaterialidade do perispírito. Aqueles em cujo perispírito predomina a matéria encontram-se no degrau inferior da escala: ignorantes, egoístas, propensos às paixões e ao mal. Podem ainda ser nem muito bons nem muito maus, mas apenas intrigantes, perturbadores, inconseqüentes, estouvados, levianos. Vem depois a classe dos espíritos que manifestam predomínio do espírito sobre a matéria: procuram o bem e desejam a sabedoria, protegendo os encarnados à maneira de gênios bons. Finalmente, o mais alto grau da hierarquia é ocupado pelos espíritos puros ou anjos, inteiramente libertos da materialidade. Caracteriza-os a proximidade de Deus, donde a sua superioridade moral e intelectual, já não estando sujeitos a posteriores reencarnações expiatórias. Representam a meta a ser alcançada por cada espírito.
A doutrina kardecista repousa num pano de fundo filosófico muito mais próximo das religiões da Índia do que da teologia cristã ou do pensamento aristotélico: a idéia de uma evolução cósmica. Nessa perspectiva, a despeito de sua hierarquização, os espíritos não pertencem eternamente à mesma ordem. Ao contrario, eles se encontram num processo evolutivo que não se restringe ao breve curso de uma existência na matéria, marcando os sucessivos estágios de um aperfeiçoamento .
"Todos melhoram", escreve Allan Kardec, "passando pelos diferentes graus da hierarquia espírita. Esse aperfeiçoamento se verifica pela encarnação, que a uns é imposta como expiação, a outros como missão." Eis o sentido da vida espírita: aperfeiçoar-se sempre mais e, pelo próprio aperfeiçoamento, contribuir para o progresso geral da criação. Percebe-se a estrita conexão entre a visão evolutiva do mundo e a teoria do karma – lei da causa e do afeito – segundo a qual as dividas de cada um devem ser saldadas pessoalmente. O progresso moral dos indivíduos depende exclusivamente do mérito pessoal alcançado nesta ou nas encarnações anteriores. Desse progresso individual depende a evolução geral do universo, e o ritmo da evolução é marcado pelos esforços de cada um para atingir a perfeição.
Certamente cada espírito traz consigo um passado de méritos a crescer e deméritos a expiar em repetidas provas – as encarnações – até atingir o mais alto grau da hierarquia. A encarnação ocorre nos diferentes globos do universo, pois a Terra não é o único mundo habitado, mas um planeta material e distante da perfeição. O que possibilita determinar as diferenças entre os mundos que o espírito tem de percorrer é sua menor ou maior materialidade, segundo a pureza ou o grau de desenvolvimento moral a que conseguiu chegar.
Para o kardecismo, a reencarnação é imprescindível, pois não há faltas irremissíveis; a alma necessita da prova da vida corpórea para se depurar. Sem a reencarnação, o espírito permaneceria estacionário e não atingiria jamais a perfeição que deve ser alcançada por todos, conforme o justo e misericordioso desígnio de Deus. Nega-se o inferno e a condenação eterna, pois mesmo seres espirituais designados pelos cristãos como demônios são espíritos criados por Deus em estado de perfectibilidade total. O fato de se acharem no degrau inferior da escala não significa absolutamente que estejam condenados para sempre, mas que devem procurar seguir também a lei do progresso moral.
"Se observarmos a série dos seres", escreve Kardec, "percebemos que eles formam uma cadeia contínua desde a matéria bruta até o homem mais inteligente. Mas, entre o homem e Deus, que é o alga e o ômega de todas as coisas, que imensa lacuna! Será razoável pensar que parem no homem os anéis desta cadeia? (...) Qual a filosofia que preenche esta lacuna? O Espiritismo nô-la apresenta preenchida pelos seres de todas as categorias do mundo invisível e esses seres não são mais que os espíritos dos homens nos diferentes graus que conduzem à perfeição. E assim, tudo se liga, tudo se encadeia, do alfa ao ômega, obedecendo à grande lei universal da evolução: nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, esta é a lei!"
As grande Religiões, vol 5, Abril cultural,1973.
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